domingo, 26 de outubro de 2025

 “Como te não amaria eu? Além disso tens para mim um dote que realça os mais: sofreste.

E minha ambição é dizer à tua grande alma desanimada: levanta-te, crê e ama: aqui está uma alma que te compreende e te ama também.

Eu te amo como se ama o que é santo e puro. E essa afeição, que não nasceu da beleza apenas, mas da dor, da bondade, do espírito e da alma, é das que resistem ao tempo, às vicissitudes e ao próprio desânimo.

Não é um entusiasmo; é um sentimento profundo e refletido, e por isso mesmo mais verdadeiro e durável.

Se te posso dar alguma coisa, é este amor calmo e fiel, que não promete o impossível, mas que é todo teu enquanto viver.”


Machado de Assis, Carta a Carolina Augusta Xavier de Novais, 2 de março de 1869. In: Correspondência de Machado de Assis (1860–1908).


segunda-feira, 29 de abril de 2019

No meu álbum de sorrisos, o teu se encontra numa página solta. Não lembro o dia exato em que ele tanto se abriu que teus olhos tanto se fecharam. Nessa hora, minha mirada fez morada em ti e te fotografei.

Como de costume, te revelei no escuro; num desábito, te colei numa folha dilacerada e teu sorriso marcou cada face do meu livro de recordações. Demorei meus olhos no sorriso daquela página solta, dobrei bem pequenino, guardei fundo no bolso que te coube e saí à tua procura.

Com o teu sorriso nas mãos, encontrei teus olhos que pareciam estrelas de desenho: brilhantes e com cinco pontas, de tanto que se fechavam porque teu riso tanto se abria.

Tuas estrelas brilhantes cortaram todo o meu céu e, numa cadência, uma chuva de estrelas desaguou nos meus olhos.

E pela última vez, meus olhos se encharcaram dos teus. Remansada, lembrei que era o teu sorriso que eu tanto procurava.
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M. K. K.

segunda-feira, 17 de dezembro de 2018

Me querias doce e dócil. Doce de rasgar a garganta, dócil pra me engolir por inteiro. Fui puro fel sob uma lua de mel e me cuspiste. Meu abraço era doce de tuberosa e eu perdi as contas de quantos ramos enfiei nos bolsos da tua calça. Desabrochadas, caíram sobre o chão do teu banheiro. O meu cheiro foi lavado pela água que deslizava no abraço do teu corpo, até que entrou pelo ralo. E fui puro fel, sob uma lua de mel. E me cuspiste.

quarta-feira, 2 de agosto de 2017

terça-feira, 6 de junho de 2017

Rubem Braga - Amor e outros males

"...A senhora acharia exagerado se eu lhe dissesse que aquele amor era uma cruz que eu carregava o dia inteiro e à qual eu dormia pregado; então serei mais modesto e mais prosaico dizendo que era como um mal jeito no pescoço que de vez em quando doía como bursite. Eu já tive um mês de bursite, minha senhora; dói de se dar guinchos, de se ter vontade de saltar pela janela. Pois que venha outra bursite, mas não volte nunca um amor como aquele. Bursite é uma dor burra, que dói, dói, mesmo, e vai doendo; a dor do amor tem de repente uma doçura, um instante de sonho que mesmo sabendo que não se tem esperança alguma a gente fica sonhando, como um menino bobo que vai andando distraído e de repente dá uma topada numa pedra. E a angústia lenta de quem parece que está morrendo afogado no ar, e o humilde sentimento de ridículo e de impotência, e o desânimo que às vezes invade o corpo e a alma, e a 'vontade de chorar e de morrer', de que fala o samba? Por favor, minha delicada leitora; se, pelo que escrevo, me tem alguma estima, por favor: me deseje uma boa bursite."

Do livro "A traição das elegantes".

segunda-feira, 22 de maio de 2017

Maria

Maria é sempre Maria
Aqui, aquém e além:
A louca
Antonieta
Madalena
De Nazaré
Da artilharia, bruxaria
De quem ela quiser

Eu sempre quis ser Maria
Pura
Impura
Loucura:
Ninguém amaria

Ser Maria-Maria
Assim, por si só,
Uma Maria, tão Maria
Que Deus nunca teria dó

MKK

segunda-feira, 15 de maio de 2017

Cântico Negro - José Régio

Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!